Por: Yasodara Cordova – Nas últimas duas décadas, vivenciamos diversas situações acontecendo no Brasil e no mundo devido ao uso descuidado de tecnologias emergentes. Com isso, as empresas investem ainda mais em inovação tentando construir seu espaço e confiança no ambiente digital. Esse movimento foi guiado por uma combinação de propósitos, governança e foco em todos os participantes do ecossistema digital, especialmente no cidadão comum, até porque a desconfiança desse público é um termômetro da reputação das empresas e pode impulsionar crises.
A iniciativa do Digital Trust, grupo de estudos do Fórum Econômico Mundial do qual faço parte, vem acompanhando esse cenário e procura estabelecer um consenso global sobre quais processos mensuráveis podem ser adotados para melhorar a confiabilidade das tecnologias digitais. Para chegar lá, é necessário primeiro compreender o que é a confiança no ambiente digital. Trata-se da expectativa dos indivíduos de que as tecnologias e serviços digitais – e as organizações que os fornecem – protegerão os interesses de todas as partes envolvidas na cadeia do ecossistema digital: usuários, empresas, e outras instituições e clientes – e defenderão as expectativas e os valores da sociedade, incluindo nossos direitos.
O principal ponto é que, nos últimos 15 anos, as tecnologias digitais foram desenvolvidas para organizar e compartilhar informações. O que aconteceu, mas em velocidade incompatível com medidas que pudessem assegurar o bom funcionamento da sociedade. Dentro do Fórum Econômico Mundial, definimos que a confiança é, portanto, necessária nas organizações modernas para garantir que as empresas deixem para trás o famoso “mova-se rápido e quebre as coisas”, ditado adotado na década passada por muitos do Vale do Silício. Esse apelo foi feito em 2018 na revista Harvard Business Review por Hemant Taneja, CEO e diretor administrativo da empresa global de capital de risco General Catalyst, patrocinadora de empresas lendárias como Stripe, Snap, Samsara, Airbnb, Kayak e Gusto.
É preciso investir em novos caminhos para que os direitos humanos sejam incluídos nas agendas das empresas, visando inclusive novas capacidades de lucro. Isso inclui o tratamento de modo igualitário e respeito para todos, independente de raça, credo, gênero, idade. E, em última instância, que as tecnologias sejam também pilares que sustentam a democracia e a confiança. Essa mudança de mentalidade deve ser seguida de tomadas de decisões coerentes por lideranças empresariais e que se baseiam em três grandes pilares: Segurança e Confiabilidade; Responsabilização e Supervisão; Uso Inclusivo, Ético e Responsável. As organizações devem priorizá-los para não só melhorar a sua reputação digital como também construir a fidelidade com seus stakeholders a longo prazo, reforçando a confiança nas experiências dos usuários bem como a capacidade de reparação da justiça e respeito à privacidade de dados desses usuários.
Para isso, é recomendado examinar a força e a resiliência dos relacionamentos de uma organização, independente do contexto B2B ou B2C. Quando o assunto é confiança, principalmente no ambiente digital, alguns indicadores podem apoiar essas análises: temos os indicadores de percepção como satisfação, lealdade, entusiasmo e compreensão do fluxo de dados; os indicadores comportamentais, como adoção, engajamento, retenção e promoção de um produto, serviço ou marca; e os indicadores de governança, como segurança e cibersegurança, transparência, interoperabilidade dos sistemas, audibilidade, recorribilidade, justiça e privacidade.
Além das lideranças executivas, esses pilares podem ser úteis para reguladores, investidores e demais stakeholders. Os esforços para impulsionar o sucesso não podem elevar o risco de despertar a desconfiança, em um mundo aonde chegam regularmente notícias sobre questões tecnológicas como hacks de segurança, vigilância inadequada ou ilegal, uso indevido de dados pessoais, disseminação de notícias falsas e desinformação, vieses e preconceitos algorítmicos e falta de transparência entre empresas e usuários.
A desconfiança resultante desses incidentes pode prejudicar significativamente a reputação de uma organização e, consequentemente, desgastar a própria sociedade com essa confiança enfraquecida na capacidade da comunidade empresarial de utilizar a tecnologia de forma responsável. Para inverter essa tendência, acredito que essa construção sempre dependerá do apoio de leis locais, mas também de pessoas da tecnologia que saibam o que estão fazendo. No Brasil, por exemplo, temos a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), em vigor desde 2020 e, desde então, tornou-se um marco na administração pública. Ela trata dados pessoais em um cenário de crescente uso de tecnologia com o princípio de proteger, acima de tudo, o usuário.
A pesquisa “Tecnologias Emergentes 2023”, da PwC, revela que a maioria das lideranças executivas acredita que IoT, IA (incluindo GenAI), Blockchain e Realidade Virtual as ajudarão a construir a confiança desejada por seus stakeholders nos próximos 12 meses. Para 47%, essas tecnologias já proporcionam maior confiança. No entanto, acredito que uma empresa não se torna mais confiável só por ter as ferramentas. É claro que podem ajudar, mas é papel da liderança cuidar da governança, aplicar os pilares e medidas fundamentais dessa construção de confiança entre as partes interessadas. É essencial saber utilizá-las nesse processo para gerar, de fato, benefícios para a sociedade. Ao estabelecer essa estrutura com um mínimo de ações que possam ser executadas nas empresas dentro desses objetivos, será possível reconquistar a confiança do usuário.
A era da privacidade chegou e cada vez mais países e empresas estão enxergando a necessidade de educar a sociedade sobre o controle de seus dados e a protegê-los como um ativo importante. Na área de privacidade e segurança, evoluímos novas funcionalidades que permitem coleta, visualização, concessão de permissões para uma relação mais igualitária. Contudo, devemos criar ainda mais ações de transparência para proteger os usuários. Essa jornada não está focada apenas na geração de lucro para os negócios, mas sim em proporcionar um futuro melhor para a sociedade. Devemos elevar a qualidade dessas práticas como algo inegociável. Ser ético e confiável é, antes de tudo, uma escolha.
* Yasodara Cordova, pesquisadora-chefe em Privacidade na Unico