O ano de 2023 começou com mudanças importantes que devem ser consideradas pelas empresas de tecnologia na estruturação dos seus modelos de negócios para operação no Brasil.
Muito tem sido publicado sobre o assunto, mas apesar das mudanças impactarem as empresas em geral, as novidades trazidas pela legislação trazem impactos especialmente relevantes para as empresas de tecnologia, e são esses impactos que pretendemos tratar no presente artigo.
As alterações vieram em três frentes: (i) por meio da Lei 14.286/21 (com entrada em vigor no final de 2022), que revogou a necessidade de registro de contratos de transferência de tecnologia perante o INPI e perante o Banco Central do Brasil para efeitos de permissão da remessa ao exterior dos royalties devidos; (ii) por meio de alterações na legislação de propriedade intelectual no que diz respeito ao papel do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) no registro dos contratos de tecnologia; e (ii) por meio da edição das novas regras de preços de transferência que revogaram diversas limitações relacionadas à dedutibilidade dos valores pagos no contexto dos contratos de propriedade intelectual.
Do lado cambial, a Lei 14.286/21 revogou a necessidade de registro contratos de transferência de tecnologia perante o INPI e Banco Central do Brasil para autorização de remessa de royalties, e passou a estabelecer que a remessa para o exterior na forma de royalties, assistência científica, administrativa e técnica dependerá apenas de prova de pagamento, no Brasil, do imposto de renda retido na fonte.
Com relação a legislação de propriedade intelectual, há muito tempo se discutia alterações que melhorassem a competividade do Brasil. Finalmente essas discussões geraram frutos, e, entre outras mudanças, o INPI passou a admitir o licenciamento de tecnologia não-patenteada (know-how).
Também passou a ser admitido pelo INPI o licenciamento remunerado de pedidos de marcas, patentes e desenhos industriais, não sendo mais necessária a efetiva concessão do título.
Além disso, o INPI reduziu as formalidades necessárias ao registro dos contratos e, ainda, reiterou seu posicionamento no sentido de que não tem competência para determinar limites de pagamento de royalties entre empresas vinculadas, e nem para analisar os aspectos fiscais e econômicos dos contratos, que poderão ser livremente acordados entre as partes.
No tocante à legislação fiscal, a Medida Provisória nº 1.152 (“MP nº 1.152/22”), que dispõe sobre as alterações à legislação brasileira de preços de transferência, trouxe importantes impactos com relação especialmente aos limites antes existentes para os pagamentos ao exterior feitos no contexto dos contratos de propriedade intelectual.
E por que as empresas de tecnologia serão fortemente impactadas pelas mudanças referidas acima?
A nosso ver, são dois os motivos principais, sendo o segundo deles consequência direta do primeiro.
O primeiro deles é que, seja em razão da relevância do mercado consumidor local, seja em razão das dificuldades operacionais que se apresentaram no passado, para de fato explorarem todo o potencial do mercado brasileiro, as principais empresas de tecnologia tiveram que se estabelecer localmente por meio da constituição de subsidiárias brasileiras.
E para que as subsidiárias locais pudessem operar, impôs-se a necessidade de celebração de diversos contratos intragrupo que conferissem às empresas brasileiras o direito de explorar o mercado local, especialmente por meio do licenciamento de ativos intangíveis de titularidade das matrizes no exterior com o consequente pagamento de royalties ao exterior.
Como sabemos, a economia digital conta com alto grau de mobilidade, por basear o seu negócio essencialmente na disponibilização de uma solução tecnológica a usuários, cujos ativos valiosos são, na maioria das vezes, bens intangíveis. Com isso, a economia digital é fortemente baseada no desenvolvimento e exploração de ativos intangíveis.
E ao celebrarem esses contratos intragrupo tratando da exploração desses ativos intangíveis, as empresas de tecnologia se depararam com uma legislação diferente da adotada no restante do mundo e tiveram que se adaptar.
O Brasil adota medidas restritivas desde a década de 1950 para evitar a maximização de deduções por empresas brasileiras relativas a pagamentos a título de royalties e serviços.
Diferentemente dos demais países, com base em previsão específica na legislação que trata do assunto, as regras de preços de transferência atualmente em vigor no Brasil não são aplicáveis aos casos de remessas para pagamentos a títulos de royalties e assistência técnica, científica, administrativa ou assemelhada.
Esses pagamentos continuaram sujeitos aos limites de dedutibilidade específicos previstos na legislação (além da necessidade de averbação dos contratos perante o INPI para possibilitar não só as remessas mas a própria dedutibilidade dos valores). E os dispositivos legais que tratam do assunto trazem uma série de limitações ao pagamento de royalties, sejam relacionadas à sua natureza (nem todos os pagamentos são permitidos), sejam relacionadas ao limite percentual máximo do total da receita bruta que as empresas estão autorizadas a remeter ao exterior.
Nesse sentido, por exemplo, a legislação atual não permite a dedutibilidade dos royalties pagos a sócios ou dirigentes de empresas, e estabelece o percentual máximo de dedução de 1% para pagamentos pelo uso de marcas de indústria e comércio e de 5% para pagamentos pelo uso de patentes de invenção, processos e fórmulas de fabricação, despesas de assistência técnica, científica, administrativa da indústria de comunicação, combustíveis, transportes etc.
Diante desse arcabouço legal tão diferente e restritivo, as empresas tiveram que adaptar seus modelos de negócios para operar no país e implementaram uma série de estruturas que precisarão ser revisitadas, uma vez que as novas regras trazidas pela MP nº 1.152/22 sejam de aplicação obrigatória (o que deve acontecer apenas em 2024 e se houver a conversão em lei da medida provisória).
Com base nas novas regras, no lugar dos limites específicos de dedutibilidade trazidos na legislação antiga, as transações com intangíveis devem seguir as regras gerais do princípio arm’s length e da análise das características economicamente relevantes. Ainda, para os “intangíveis de difícil valoração”, a MP prevê a eventual necessidade de o contribuinte realizar os ajustes de preços de transferência “por meio da determinação de pagamentos contingentes anuais que reflitam as incertezas decorrentes da precificação ou da avaliação do intangível”.
Além das novidades na legislação brasileira, indicadas acima, que afetam diretamente a forma de estruturação dos negócios que os grupos multinacionais utilizam para operar no país, as empresas de tecnologia deverão ainda levar em conta as recentes alterações na legislação americana no que diz respeito à possibilidade de creditamento dos valores relativos ao IRRF pago no Brasil (caso as remessas em questão sejam realizadas à empresas situadas nos EUA).
Por todos os motivos expostos acima, é recomendável que as empresas revisitem seus modelos de negócios, desde já, para verificarem se há possibilidade de adoção de uma estrutura contratual mais simples, inclusive levando em consideração que as novas regras de preço de transferência já poderão ser aplicadas para o ano-calendário de 2023 caso sejam de fato aprovadas pelo Congresso.
Fonte: taxpratico – Mudanças na legislação federal podem impactar empresas de tecnologia no Brasil