A Lembrança do que esqueci

Por Jeovani Salomão*  Tenho visto livros, filmes e séries de ficção nos quais a biologia humana é melhorada por intervenções tecnológicas. Em especial, observo o crescente uso de lentes de contato, ou equivalentes, para registrar imagens, efetuar reconhecimento de padrões e pessoas. É tentador imaginar que se possa gravar cada momento da vida e acessá-lo quando necessário.

Sob o aspecto prático, a revisão poderia aperfeiçoar nossa atuação profissional, contribuir com o aprendizado, diminuir as interpretações sobre acordos, contratos e tratados não escritos, elucidar algumas dúvidas de percepção de situações controversas e, inclusive, reprimir atos ilegais. No lado emocional, poderíamos rever pessoas, lugares e acontecimentos especiais, bem como teríamos a possibilidade de comparar nossas próprias reações, em episódios similares, em diferentes estágios da vida.

As relações humanas teriam uma perspectiva totalmente nova, a essência da sociedade seria profundamente afetada, na medida em que cada um teria a capacidade de se lembrar de forma integral de cada ocorrido. Os desafios seriam imensos, ainda que com inúmeros benefícios.

Os desafios para implantar massivamente um cenário como este são, no mínimo, interessantes. Já há óculos com câmeras embutidas disponíveis no mercado e alguns projetos de lentes de contato poderosas. Mais dia menos dia, o olhar terá o potencial de gravar não apenas de maneira biológica.

O armazenamento das imagens já é outra questão. Possivelmente, os usuários devem querer manter privacidade sobre aquilo que vivenciaram, motivo pelo qual vão precisar de dispositivos seguros e portáteis. Dificilmente alguém colocará suas intimidades em risco ao compartilhá-las em nuvem, salvo que tenha objetivos específicos ou que sejam adeptos inveterados das redes sociais.

Apenas para que se tenha ideia da magnitude do que estamos falando, caso você tenha um celular com uma capacidade de 128 GB de memória, por exemplo um Sansung Galaxy note 9, e decida efetuar gravações em HD (high definition) do seu dia, você conseguirá armazenar pouco mais de 30 horas de vídeo antes de atingir a capacidade do seu aparelho. Quanto mais alta a resolução, mais rapidamente o espaço é consumido. Em uma gravação em 8k, você consumiria a capacidade do seu celular em apenas 3 horas. Note que o olho humano é ainda mais poderoso que os dispositivos dos smartphones atuais, ou seja, o espaço utilizado para gravar nossos olhos será ainda maior.

Se um dia chegarmos neste ponto, onde seja viável gravar e armazenar em vídeo cada detalhe do que se passa conosco, iremos nos confrontar com algo inusitado. Seremos tentados a imaginar que algumas gravações estão incorretas, porque estarão diferentes daquilo que nos lembramos biologicamente. Ao contrário do que se imagina, nossa memória não registra os fatos tal qual as câmeras. Talvez, inclusive, por uma questão de capacidade de armazenamento.

Somos razoavelmente bons para registrar coisas relevantes e, em geral, não tão bons para os detalhes. No entanto, quando somos requisitados a reconstituir um acontecimento, simplesmente não nos contentamos em reproduzir o quadro incompleto do qual realmente nos lembramos, vamos acrescentando e completando aquilo que falta de acordo com nossa imaginação, vontade, coerência ou conveniência.

Um dos maiores escândalos americanos é conhecido como Caso Watergate, cujo início coincide com a campanha eleitoral para presidência dos Estados Unidos de 1972, na qual Richard Nixon foi reeleito. Em suma, a sede do partido Democrata, opositor a Nixon, fora invadida para obtenção de informação e implantação de escutas. O governo, após eleito, tentou ocultar o fato, mas não teve sucesso, levando à renúncia do presidente em 1974.

Um dos conselheiros de Nixon na Casa Branca, John Dean, envolvido com a tentativa de encobertar o ocorrido, tinha a reputação de ter uma excelente memória. Chegara a ser apelidado de “gravador humano”. Seus depoimentos no Senado foram ricos e repletos de detalhes, com a lembrança precisa das falas e dos interlocutores. Enfim, pelo menos era isto que se pensava até a descoberta de uma precaução efetuada pelo presidente. Nixon gravava secretamente as conversas. Tal história é contada no livro Subliminar, do excelente Leonard Mlodinow, que escreveu sobre o caso:

“O psicólogo Ulric Neisser fez a verificação. Pacientemente, comparou o testemunho de Dean com as verdadeiras transcrições e catalogou suas descobertas. Acontece que John Dean estava mais para romancista histórico do que gravador humano. Não acertou quase nada das recordações das conversas. Aliás, nem chegou perto.”

Evidentemente, como o testemunho pretendia não incriminar o próprio autor, pode-se argumentar que este fator tenha causado as distorções. Ocorre que há diversas passagens cujo teor não era incriminatório, aspectos secundários ou de contexto, nos quais não havia razões para mentir, inventar ou distorcer. Mesmo nestes pontos específicos, o nosso personagem em nada acertou.

Recomendo fortemente a leitura do livro, por várias passagens interessantes, em particular, no caso atual, o capítulo 3. Lembrança e Esquecimento. Por fim, tenha em mente que quando você se lembra, eventualmente, pode estar se recordando apenas de uma parte dos fatos e completando a outra. Ou seja, efetuando uma construção do pedaço da lembrança que você esqueceu.

*Jeovani Salomão é fundador e presidente do Conselho de Administração da Memora Processos SA, Membro do conselho na Oraex Cloud Consulting, ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional e escritor do Livro “O Futuro é analógico”.

Fonte: capitaldigital

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